segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A ambivalência

" - Então não acredita no destino? Num poder que reina acima de nós e que tudo orienta para nosso bem? - Não se trata, aqui, das minhas convicções, nem é sítio para eu lhe expor como procuro tornar de algum modo concebíveis coisas que são inompreensíveis para todos nós. A questão está apenas em saber quais são as concepções qu contribuem para o nosso bem. O tecido deste mundo é feito de necessidade e de acaso. A razão humana coloca-se entre ambos e sabe dominá-los: trata o necessário como fundamento da sua existência e é capaz de orientar, conduzir e utilizar o acidental. Só na medida em que ela permanece firme e inabalável é que o homem merece ser chamado um deus da Terra. Ai daquele que se habitua, desde a juventude, a querer encontrar no necessário algo de arbitrário, que gostaria de atribuir ao acidental uma espécie de razão, obedecer à qual seria até uma religião! Significa isso outra coisa que não seja renunciar ao seu próprio entendimento e dar todo o lugar às sua tendências? Imaginamos que somos crentes, porque nos vamos arrastando sem reflectir, nos deixamos determinar por agradáveis acasos e, por fim, damos ao resultado de uma vida assim oscilante o nome de orientação divina. "
Livro I, Cap. XVI in Wilhelm Meisters Lehrjahre, J. W. Goethe
A eterna busca de Goethe, para além das tendências da sua natureza, para além do movimento artístico dominante da sua época, de cariz romântico, é o que mais aprecio neste autor. A constante suspeição é, afinal, parte do método seguido e prescrito pelo nosso amigo Nietzsche, por exemplo. Mergulho mais nas minhas paixões se as submeto à pedra de toque do meu entendimento. Mas como se constitui esse entendimento, nos homens sábios, é o que mais importa compreender e imitar se possível for. É preciso talvez arrancar o homem à sua contingência, perceber em que medida na sua vida se concretiza a ideia matriz, um eterno retorno, parecendo o seu destino obedecer a leis importantes só porque estas se perdem da sua memória. A memória de todos os poetas e pensadores juntos é a nossa chave para soltar as grilhetas da religião e do mito. É trabalho de uma vida, está-se mesmo a ver, como podemos afastar-nos da nossa vida como um pássaro e ainda assim vivê-la com paixão? A espontaneidade da paixão, ironicamente, só é possível através do escrutínio do entendimento, na medida em que estivemos desde sempre mergulhados numa inconsciência colectiva que visa a preservação da vida em sociedade. No século XVIII, Goethe já entendia essa tarefa auto-desconstrutiva e já a levava a cabo através da sua escrita, permanecendo para os vindouros como um escritor ambivalente, um escritor do ambivalente, sem etiqueta fácil.