terça-feira, 27 de outubro de 2009

NEVERMORE

NEVERMORE é um terrível pássaro que ninguém quer ter no parapeito e nunca o chamamos, quem ousa? Este visitar-nos-á um dia. Ao lado do nosso caminho, mora o Nevermore mas, entretanto, experimentamos mortes intermédias que nos deixam como que à beira do fim. Sentimos a morte porque a sustentamos desde que nascemos. Ninguém se atreve face ao amor a pronunciar um gélido NEVERMORE.

Mortos-vivos e nados-mortos

Se conseguisse, perdoava-te. Perdoava-te sempre se pudesse mas já nem a esperança de um pedinte sobrevive à clara realidade que mora no meu peito. Ainda subsiste algum clarão de lucidez que resiste às feridas mas habita o meu peito a mágoa de um enjeitado, sentimento horrível que desfazia se pudesse. Estou doente e sei que doente não amo. Como posso resignar-me ao fim do amor que nem nasceu? Não posso mas ele morre e eu estou como morta. Acrescento-lhe a alucinação de um alimento que ele já não pode aceitar. Morta-viva. Fui eu, fui eu, fui eu a responsável de tomar nos braços uma ilusão, de incubar um nado-morto. Fui eu a responsável pelo que alojei e bem sei o quanto me consolou. Perdoava-me se pudesse.
Perdoa-te se puderes.

sábado, 24 de outubro de 2009

Um Lobo

Ele há coincidências! Estava eu a conquistar a paz de ler umas páginas de um livro escolhido ao acaso de entre os tesouros insuspeitos de uma prateleira de uma livraria-standard, Que chatice esta de tentar findar uma frase e ver que menti por causa da maldita mania pomposa de ter algo para contar. Eu sou ainda menos de fiar na minha impaciência de ver algo dito do que Ele que tinha pressa em ver algo feito.

Mudando de parágrafo... o livro, ainda sem nome cá dentro, O MEU NOME É LEGIÃO, acenava contudo os seus direitos de autor. Um Lobo, um verdadeiro Lobo da literatura, dizem, e eu digo amén nestas coisas muitas vezes, ditou o acaso de o comprar.

Mas a coincidência de desfolhar um livro e ver os olhos azuis (que diabo, azuis!) do seu autor no ecrã televisivo, empurraram-me para o erro grosseiro de entrelaçar intimamente o texto daquelas páginas ainda mal desbravadas com o seu autor material.

É este homem de carne e osso que a Judite sabe a duras penas não poder conhecer. Coitada da Judite! O que ela se revirava na pele de jornalista consagrada. Condoí-me dela - verdadeiramente. As portas abriam-se-lhe diante do Lobo mas ela não sabia como entrar. Condoí-me mesmo - todos sabemos o que é sentirmo-nos uns inúteis e estúpidos em pleno desempenho. Todos nós, claro, mas a carreira a pesar no lombo pode fazer-nos parecer um iô-iô quando cái ao chão por um instante que seja.

A minha sorte de boi pachorrento, que o que queria era pastar nas palavras cinzeladas do Lobo, foi o realizador ter percebido como tirar a Judite de processo tão desastroso, ao oferecer-nos os olhos e as mãos do entrevistado. O lobo abria-se, condoía-se da fronha aflita da Judite e abria-se em sorriso. Abria a porta de si mas não havia maneira da Judite vislumbrar passagem para o outro lado. Viver é mesmo assim - há portas que nunca veremos abrirem-se para nós mas o que dizer quando a nossa tarefa é fazer abrirem-se portas para um vasto público que vê mais do que nós - talvez assim suceda por estar confortavelmente sentado a pastorear. É o que digo a mim mesma quando estou em directo com os pacholas dos meus alunos e tenho de trabalhar para extrair-lhes algum minério. Sob stress laboral, uma pessoa cega e não sabe o que faz.

Mas, ainda assim, pergunto-me quem teve a infeliz ideia de colocar frente a frente aqueles dois quando se sabia que dali não podia sair namoro pegado como sucedera em entrevista ao nosso Primeiro. Neste caso foi confrangedor perceber que ou bem que o Lobo se saía com um louvor ao S.L.B., ou arriscavamo-nos, pobres bois pasmados, a ver a Júdite a enfiar-se pelas páginas do livro que tinha diante de si adentro.

Pior do que isto, só me lembro da asneira de terem colocado aquela senhora da Dois, do Outro Lado com o professor Marcelo. Ouvir da boca de José Saramago a blasfémia de querer ver consignado na Carta dos Direitos do Homem o direito à blasfémia também causou dor a estes olhos bovinos.

Àqueles que querem realmente pastorear, não aconselho o tempo televisivo - o real já é bem duro. Desfolhem antes um livro, é que não havia necessidade... mau casamento em televisão só dá certo com o grau de comicidade inerente à função de um verdadeiro bobo como é o caso do Ricardo Araújo e sua trupe.

Como sair deste buraco em que me meti ou: aceito convites para ir ver os Muse

Atraio matéria mas sou anti-matéria. Existo desde os fundos do existir com o sentido de não fazer sentido. Ocupo o espaço do que se desagrega em meu redor. Em volta de mim não existo, existe matéria para lá de mim mas nunca lhe conheço a forma e de mim partem feixes de luz que não sei o que alcançam. Não sei conhecer, as geometrias que se desenham não me pertencem mas passo a vida a aspirar.

Branco é, galinha o põe: quem sou eu?

domingo, 27 de setembro de 2009

Dos nossos momentos

Acabo de ver um pequeno filme sobre os momentos - um enternecedor registo de momentos que quem vê não pode deixar de sentir como idênticos aos que por si foram já vivenciados ou contemplados. É disso que se vive, de muitos momentos contíguos. É isso, o banal, o comum a todos, o não reflectido, que temos arredado das nossas vidas em conjunto. Quantos momentos nos passam pela janela da memória sem a nossa marca na vida do outro... Se vivemos ao contrário de toda a gente, separados que estamos, não é isso a demonstração de que somos diferentes. Não somos. Projectamos. Imaginamos. Invejamos. Esperamos. Observo os momentos dos outros e revejo o que já vivi. Então não vivo. Passam velozes esses momentos porque são muitos. Quando penso nos nossos momentos, eles surgem-me marcados pela singularidade e lentos, pois são poucos e descontínuos. Não são singulares, são singularizáveis. Apenas isso. Somos efectivamente crianças quando entrelaçamos os dedos e nos beijamos, quando falamos e olhamos o rosto do outro. Mas crianças com uma certa velhice paralela ao nosso ainda inocente amor iniciático. Tudo é singular mas tenho fome da reminiscente banalidade de viver o momento. É assim que se vive. De outra forma tudo não passa de um simulacro do que podíamos efectivamente viver. Quando será o momento de viver o momento? Quando chegará a hora de medirmos o amor ao segundo e enchermos o baú de recordações de momentos passados juntos à luz da idade que efectivamente temos...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O que me conta o Amor - Dó Maior

http://www.youtube.com/watch?v=z8mOsgc0H8Y

Acaba-se o uníssono, não se julgue que ficam vozes protagonistas quando a mão treme no sopro delicado - ficam vozes desgarradas tomadas de raiva condizente com o manto mais profundo que sempre se quis ocultar.

Que desgraçada sinfonia a dos que se atrevem a ensaiar a prova mais rente do amor - cantá-lo no palco da vida, afinal, exige fibra. Continuemos molemente a ensaiar na garagem em horas em que a casa dorme. Bem podemos escolher o tom, sós no ensaio, ele nunca destoará.

Um quase amor

Rejeito diligentemente um amor onanista
Sem objecto e sem escolha
Bato a asa em silêncio
Amo o amor como céu fora

Não ziguezagueie nem plisse mais o carácter
Em vôo espaçado e dormente
Afirme-se a firmeza da asa
Finque-se o bico na virtude

Morro ave como sempre o soube
Poisar não posso
Num quase amor

Morro com o sonho azul intacto
Informe e imenso
Como seja hora de renascimento

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Máscara

Já viram bem de perto a máscara da morte? Não uma máscara figurativa mas uma máscara dura e fria de tecidos humanos, forma do Não-Ser que ainda ontem era. Estas máscaras enterramo-las todos um dia e normalmente esquecemo-las, reportando-nos sempre ao Ser que habitou uma vida e não ao seu simulacro - aquela máscara dura e fria que se nos ofereceu à despedida. Não compreendo a insistência em colocarmos em câmara ardente a máscara da morte se não acreditamos que haja qualquer ligação afectiva e religiosa entre aquele Não-Ser e o Ser que recordamos depois pela vida fora. Há dez anos que não me lembro de visualizar aquela máscara dura e fria, impessoal e alheia ao mundo, mas um dia destes, do nada, dei comigo a lembrá-la. Por mais que procurasse desviar-me para a recordação mais habitual, a minha mente insistia sempre naquele fotograma derradeiro e enganador.

domingo, 12 de julho de 2009

Rocinante

No outro dia a minha mãe contou-me pedaços de uma história. Uma mulher como tantas que perde o marido levado pela morte. Essa mulher recusava-se a sair à rua após a morte do seu mais-que-tudo. Nunca saía à rua sem a sua companhia e foi o seu cão que a salvou após a morte daquele. Por ele, necessitado de visitas diárias ao exterior da casa da dona, ela encontrou a obrigação que a libertou de um caminho sem saída. Está muito agradecida aos passos do cão que ainda hoje a guia. Segue o seu faro e por ele reaprendeu a pisar terrenos desconhecidos. O seu cão-guia impediu-a de cegar e vê o mundo pelos seus olhos fiéis. Fiel à sua condição, salva-a um cão que não desiste de calcorrear os caminhos necessários. Ontem fui passear e vi muitos cães-terapeutas.

Eu caço com gato, o meu Rocinante fiel que sofre se não sigo as suas necessidades. Ainda assim, o meu gato procura um vaso de terra fofa para esconder os seus dejectos quando a cama habitual da sua higiene não está limpa. Ele perdoa-me o descuido da areia suja e encontra o seu caminho sozinho, sem manifestar desconsolo por ter uma dona que se esquece dele. Quando decido seguir-lhe os passos, vê-lo ao nível do seu focinho, de seus olhos, sempre acabo por descobrir que há um caminho à minha frente, daqueles caminhos singelos mas necessários que só os Rocinantes desta vida encontram. Sem calcorrear esses caminhos singelos da necessidade, não chegamos a nenhum outro.

Obrigada, meu fiel Rocinante.

domingo, 5 de julho de 2009

Emmanuelle

Revi-me agora nela, na sua pele branca, nas suas omoplatas e joelhos, na sua vontade, no seu amor... e não é acaso que ela se movesse no Oriente - como eu nos meus devaneios eróticos que vêm e vão como o vento que toca na copa das árvores... como seios que roçam seios ao de leve. Certo só o amor que te tenho. O desejo são plumas brancas que me tocam como sem querer. Entendes a Emmanuelle?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Joaninha

Joaninha voa, voa
Que o teu pai foi p'ra Lisboa.
Aproveita o que não doa
E repara a asa triste.

Se ele pisou fundo,
As asas quebra-as o teu eu
Que ele tomou como seu
Mas não quem tu és.

Joaninha, voa, voa
E chora teu vôo curto.
De choro não haja furto
De quem foi pr'a Lisboa.


Dedicatória a uma menina doce.

Nos teus braços

Preciso de ti, de teus braços de que, ontem, a braços com os meus, fiz esboço. Preciso dos teus braços, dos mesmos desenhados para me abraçar e para acertar com a bola no cesto.

Ajudem-me a ajudar!

Descobri ontem que os vizinhos de baixo mantêm uma família de gatos (mãe e filho, deduzo) na varanda das traseiras, ela presa por uma trela e os dois a dormir junto do caixote de areia onde fazem as suas necessidades. São condições precárias para dois gatos. Assim não podem explorar o seu território, nem usar os seus instintos para se sentirem seguros. Podem bem adoecer mentalmente. Pelo que observo, estão sempre lá. Podem os meus recentes vizinhos até ter motivos sérios para tomar tais medidas de manter os gatos assim à parte da família humana (alergia de algum deles, gravidez da mãe, ...) mas mais lhes valia dar os gatos a quem possa tratar deles convenientemente. Estou tentada a contactar a Protecção de Animais. Que acham? Que poderá fazer a Protecção de Animais pelos bichos neste caso... a solução será melhor do que o problema? A sorte dos animais mantidos em canis e gatis não me parece melhor. Podia experimentar falar com os vizinhos mas não os conheço e receio que não vejam com bons olhos a minha intromissão. Quando estive a viver no Algarve tive fortes suspeitas de maus tratos por parte de uma vizinha em relação à filha e chamei a polícia mas de nada adiantou. Tinham de apanhar a mãe em flagrante. Naquele caso talvez devesse ter contactado uma comissão da Protecção de Menores mas tinha fortes dúvidas do seu bom funcionamento, além de que as minhas suspeitas eram meros indícios trazidos pelo que ouvia que, acreditem-me, me parecia ir para além de uma troca de palavras mais acesa. Mas se funciona mal o organismo que defende o bem-estar das crianças humanas, aquele que deve garantir a sua protecção em caso de risco, funcionará melhor o da protecção dos animais? Aceita-se palpites. Ajudem-me a ajudar!

Caixa de Música

Reclinada rigidamente sobre uma cadeira imperfeita, disfarço mal a inquietude que me roubou o dia. Por causa dela não pára de crescer o sabor amargo que trago na boca seca. Roubei-me eu ao dia como a tantos dias sei lá por que via. Mas deste furtei-me por causa de um outro dia, de um beijo que não tomei à despedida. Por causa desse dia sofro do mal que já me conhece bem - neste dia. A inquietude sobra sempre para o dia seguinte como a ansiedade faz morrer o dia anterior. Nada oiço atentamente, pouco leio ou, se o faço, adormeço. Percorro em ensaios desgastantes soluções que me redimam a falha de um beijo. Um gato que se salve ao menos neste dia inútil de fatias de pão seco. Pego então numa caixinha de música igual à que detém um menino que, até ver, não precisa de uma caixinha de música guardada. Assim é por ser menino - irrequieto mas desconhecedor do sabor da inquietude. O olhar do menino embala-me e entro com ele na caixinha, à espera de um novo dia.

Nós também reparamos na caça grossa

Estive cá a matutar com os meus botões, a procurar lembrar-me de paixões avassaladoras, daquelas que se cozinha como a mousse Alsa, passo a publicidade em nome do imaginário de toda uma geração, que se inventa com estranhos com quem nos cruzamos na rua, quase de relance, fenómeno que, estou em crer, sucede com muito maior frequência com os homens quando se cruzam com belas desconhecidas (que me perdoem os homossexuais a discriminação, tal prende-se momentaneamente com a necessidade de reduzir o pensamento a um estereótipo, já que daqui não sairá nada de criativo e original). Não precisei de pensar muito, esse fenómeno só sucedeu comigo em duas ocasiões. Lembro-me perfeitamente dos locais e das circunstâncias em que a Vontade não superou o desejo de contemplar os belos que por mim passaram, e lembro-me que eram particularmente belos, altos e espadaúdos, bem vestidos e de olhar inteligente e indiciando bom carácter (fosse esse o caso ou não - nunca o pude confirmar). Na primeira situação tive mesmo de girar o pescoço para lá do que é socialmente aceite vindo o gesto de uma mulher que aprecia a beleza encarnada da masculinidade. Da segunda vez, e de novo atraída pelos fortes atributos que me deixaram siderada da primeira vez, fui mais longe, já que o jovem cavalheiro de ar distinto se fazia acompanhar, no Passeio Alegre, de um belo cachorrinho, pretexto por mim usado até ao limite da decência para prolongar aquele doce encantamento. Desta vez o estranho sorriu-me por momentos quando os nossos olhos se cruzaram "casualmente", já que os dois seguiamos o bichinho, cada qual em sentido oposto ao do outro, quase na dinâmica do anúncio do Impulse. Quase! Eu não tinha flores para lhe oferecer. Em ambos os casos corei até às orelhas, o calor que senti atestou-me da veracidade do que pensei e aqui escrevo. Desde esses momentos mágicos, nunca mais repetidos, que me pergunto se é assim com essa força toda que os homens se torcem na rua para olhar uma mulher bonita que passa, mesmo com a mãe, a namorada ou a mulher ao lado. Eu, por mim falo, só me deixo assim acorrentar a esse impulso irracional, mas irresístivel, quando o homem em questão reúne atributos físicos excêntricos e um ar de corresponder por dentro ao desejo forte que instigou a sua figura.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Cinematografia



Estive a rever fotogramas do rosto da Jeanne e do carteirista de Bresson e acho que o que lhes encontrei que tanto me fascina, nos rostos e nos diálogos secos, nos gestos comedidos... que para mim fazem com que a cena final resulte tão bem, o que me fascina neles é aquilo de que um temperamento como o meu sente falta - algum ascetismo! Desejo de prescindir exteriormente para viver mais interiormente. Talvez porque sinta que se me der mais a esse desejo, a essa contenção almejada e não forçada, suporte melhor a tua ausência e te ame melhor.Talvez seja esse desejo algo acalentado em segredo, embora nem sempre alimentado, que se reflicta nos trejeitos de donzela do meu rosto, por vezes. Nada tem a ver com pretensa pureza, antes com o desejo de grandeza na espera. Se te espero e docemente, como posso não ser uma donzela? E se tu vens e mais forte e determinado após a ausência, como podes não ser o meu [i]caballero[/i]? Parece-te fantasia tudo isto? Quando o sinto, é quando te trago em maior sossego dentro de mim. Será o desejo de algum ascetismo num mundo de acesso fácil ao prazer assim tão despropositado?

sábado, 23 de maio de 2009

Desassossego

"A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa
dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio
marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele
ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O
segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos
homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto
o sol e a noite sobre a vária superfície da terra."

In Livro do Desassossego, Bernardo Soares


Como posso eu não ter usado estas palavras se já atingi o pensamento que encerram? O pensamento seria mesmo este? O pensamento de agora coloca-se além da dúvida simples e categórica para se concentrar no seguinte: qual a amplitude, a profundidade e a frequência de cada pensamento que produzimos? Estou eu fortemente em cada pensamento, ou é todo o pensamento fertilizável em mim? Sem resposta, vim colar as palavras que ameaçavam fugir-me.

domingo, 17 de maio de 2009

Eureka!

Ontem a dor sem nome da minha infância encontrou-me e alguém me emprestou a palavra tristeza quando o choro saiu. Estava orfão o choro e a dor era tão velha e analfabeta que, tal como uma criança que aprende uma nova letra, ontem aprendi a juntar a palavra tristeza à velha dor que sentia. Assim que encontrei a tristeza, deitei fora a dor sem nome e sorri à criança.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Tempo do Lobo

O conforto, tal qual o conhecemos no Ocidente, a vida que conhecemos sem conflitos sociais de maior, um mundo de abundância em que basta premir botões para ter acesso ao que já não dispensamos, tudo isso, pode bem estar com os dias contados. Serão estas previsões apocalípticas? E se, de hoje para amanhã, se vivesse no mais contundente mundo do salve-se-quem-puder, num mundo de verdadeira crise das estruturas de estado e da família? O campo rapidamente desconectado das grandes cidades, ficando os mais incautos por lá perdidos, vendo-se obrigados a racionar energia, bens alimentares e outros. A malha social destroçada, o contrato social desfeito, Como nos aguentariamos? Novas lideranças, novos comércios surgiriam, mas, com que valores, com que auto-regulamentação? Neste discursar livre sobre a temática de um filme, digam-me se será uma analogia forçada que me lembre da auto-regulação dos bancos e das instituições financeiras. Haneke não percorre essas linhas de pensamento, o seu filme desenvolve-se na mais fina e tensa corda do espírito humano. Percamos as ilusões, as nossas estruturas morais são mantidas intactas, contando que o mundo que as permitiu erigir esteja intacto também. Num mundo em que apenas meia dúzia de «loucos» veja o seu dique psíquico rompido e desate a matar, a violar ou que se imole pelo fogo, não estamos ainda no limite do insuportável. Mas imagine-se um romper de diques generalizado, quanto tempo resistiriam os valores humanos na sua fonte, a psique humana? Haneke começa por apresentar-nos esse mundo da loucura tolerável de alguns através de um confronto que parece banal. Uma família que se prepara para instalar-se na sua casa de campo de fim-de-semana e que encontra a o seu espaço ocupado por usurpadores. Os olhos dessa família são os nossos. Podem bem ser os nossos. Começamos por ser meros espectadores, simpáticos até com quem toma de assalto a nossa casa. As nossas reservas de humanismo estão quase intactas, a situação parece contornável. Mas Haneke presenteia-nos com o «absurdo» inesperado. O chefe de família é abatido, a mulher e os seus dois filhos encontram-se agora no limbo de quem tudo perde mas cuja estrutura mental ainda não sofreu o devido ajuste. Pedem guarida, mostrando-se a infeliz mãe ainda cordial com quem a recebe. Mas no tempo do lobo tudo se processa muito rapidamente: a procura de garantir as necessidades básicas gasta todas as reservas mentais daquela mãe num ápice. Agora usa-se tudo como moeda de troca a bem da necessidade de permanecer vivo. A família deixa de funcionar. Mas, quando o novo real é «aceite» pelos elementos desta e de outras famílias, o antigo não passando de uma reminiscência, podemos ser levados a fazer uma certa inversão de pensamento. No limite, no tempo do lobo, do vale-tudo, não será o legado familiar a fortuna de uns e a desgraça de outros? A sanidade mental geral está abalada mas não sobrevivem ainda assim à derrocada os mais aptos, aqueles que transportam dentro de si uma boa herança? No desespero, quem é capaz de manter ou até mesmo de criar novos laços humanos, talvez sobreviva melhor. Esta é a esperança representada pela filha adolescente. Mas até quando poderá esta sobreviver à anarquia que parece iminente? A mãe limita-se a chorar e já não conforta o filho mais novo que se remete ao silêncio, simbolizando este a incomunicabilidade da dor. A criança que se quer imolar pelo fogo é a expressão máxima de desespero de quem ainda não está preparado para abandonar a inocência e precisa de anular a dor. A cena final do filme espicaça-nos: um comboio que passa, talvez a caminho da cidade.Talvez um comboio que tenha parado, talvez mais um que siga viagem sem se condoer de quem está apeado na miséria. Seria aquele o fim de um pesadelo de todos, de alguns ou tão somente do nosso? Estaremos nós mergulhados na indiferença que o terminar do filme tende a restabelecer? Quem quer que siga naquele comboio, para onde se deixa transportar?
Sobre Le Temps du Loup, filme de Michael Haneke

domingo, 19 de abril de 2009

«Isto»

O que é um «isto» não depende do nosso capricho ou da nossa vontade, mas, na medida em que depende de nós, depende também, em igual medida, da coisa.
Die Frage Nach dem Ding, Martin Heidegger
Este amor não sou eu, não és tu mas também não está fora de nós. Embora se saiba que este amor é aqui e agora, é isto, ele não é o aqui e agora, o aqui e agora contêm-no e a coisa que ele é depende de nós e da coisa em si, mesmo que não se possa saber o que é a coisa em si, mesmo que não saibamos a coisa que somos e como participamos na construção de uma outra coisa fora de nós. Sem pétala engelhada e cansada, a água não se faz presença. Beber depende mais do amor da coisa do que da coisa do amor. Bebe-se porque se tem sede, não porque existe água. Tem de haver uma essência da coisa para que se constitua o fenómeno. Ser já é amar, ainda que não seja o amor, sendo que este amar não pode ser o este amor de aqui e agora materializado assim. Vive-se amor mas não este. Conforta-nos saber que nunca seria este?

Entretanto, as criadas de quarto riem-se de nós... de tanto querermos apreender a coisa, olhamos o céu e caimos no poço.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sem deuses nem deus, vaporizemo-nos com amor! Com dor, mas viva-se a par da morte em vida. Queres um bocadinho do meu amor? Então quem sabe amanhã...

O amor... tem muitas cores e tonalidades e é tão fraco como quem o sente. Não retiremos tonalidades às nuvéns - amo e sofro, amo e odeio, amo e ressinto-me, amo e guardo, amo e retribuo, amo e exijo, amo e grito, amo e acobardo-me, amo e espero, amo e calo, amo e como, amo e passo fome... amo e desamo... mas o que fica no fundo do pote é o nosso fraco amor, não é? Malgrado os vapores que continuamos a transportar à margem do que se depositou em nós... vivemos e amamos. Amei e amo mesmo que desaprenda a conjugar. O amor é como a música, pode sempre voltar a ser tocada - é um momentum perpetuum. Sem deus nem deuses, como podemos viver sem amor?

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Para onde vais?

E o corolário de uma noite, de uma madrugada perdida em teus braços, foi a manhã límpida que veio quando me revelaste a hora de ir embora, sem apertos. E sem aperto te perguntar, sem delongas nem hesitações: Para onde vais? Não conhecendo o teu destino, confiante de que me levavas em teu sorriso sereno.

Os teus olhos

Os teus olhos
são estrelas meninas
só com mil anos.
Uma eternidade de enganos
olham os teus olhos
mas para mim são astros novos
de puro encanto.

Faço aqui um apelo

Casais de pombinhos, de rolas e gaviões: - deixem de comprar o lixo que é fabricado especialmente para vós: matronas, gazelinhas, pançudos e gazeteiros; - se, entretanto, já compraram um urso de pelúcia, ainda assim redimam-se; peguem na cara metade ao colo, se disso forem ainda capazes, e ofereçam-lhe uma sessão de verdade: digam-lhe o quanto preferiam estar com a menina do 2º direito de um qualquer prédio da periferia, de uma qualquer periferia, e como seria uma prova do mais profundo amor que a vossa cara metade vos oferecesse uma noite de amor comunitário, mesmo que, como garantia da inocência do pedido, esta fizesse trocar a menina do 2.º direito pela do 1.º esquerdo. P.S.: Aceito convites comunitários agora que já não vou ver os Tindersticks: o alfa de um casal de pombinhos, marimbou-se para a amiga da sua cara metade, que sou eu, e vendeu os bilhetes a um casal vizinho. Talvez com medo que a solteirice emprenhasse a amiga com ideias de felicidade comunitária, ou, simplesmente, porque está-se borrifando para tudo que venha do planeta da pombinha sua cara metade.

Ass.: Uma amante muito aborrecida por não poder dar sequência ao seu capricho: ter companhia sábado à noite sem décadence.

Estreita fonte

A sede do mar nasce de estreita fonte
Toma esta chuva que cái de minhas mãos
Sorve com elas em concha a sede profunda
Teu sorver cálido aumente o caudal
De fonte a foz escorra o amor entre nós.

Encontra-me na fonte
Leva-me até à foz.

Beijo adiado

Meu caballero da triste figura
Beijas assim tua minha desgraça
Afoito por cor d'amada candura
Vens assi cantar-me à vidraça
Como gota de chuva dura
Que não molha, mas também não passa.

I have a dream

Eu tenho um sonho
luz branca
silenciosa
Num peito cabem
amores vivos
aquém morte
na esperança
Tu sonhas
um amor
luz branca
silenciosa
No meu peito albergo
teus amores
viva aliança
Vive no fio da navalha
da impossível redenção
limiar de pura emoção
um amor sem ladrão

Rejuvenesci!

O amor tratou de mim e agora trato-o por senhor doutor.

Dos momentos

Leio os teus textos a partir do número um, e tal como a vida, e tal como um romance, descubro sempre novas perspectivas, novas mensagens entrelinhas, rosto reconhecido de um rosto outrora estranho que te escreve dos seus olhos grandes... encontro poemas do tempo em que eram novos para mim e entretanto já calcorreados por mim, encontro ideias e sentimentos expressos como espuma nova que já tanta vez refluiu depois daquele momento e daquele outro e de mais aquele. Viveu-se mais para além dos registos mas sem eles não se viveu. Ocupam espaço. Descubro, afinal, que te leio um pouco melhor e que fazes mais sentido em cada um dos momentos pelo que lhes seguiu e pelo que lhes antecedeu. Só se levanta o véu do sentido do que vive quando perdas e ganhos já estão arquivados, quando o medo e o anseio já não podem tolher-nos a visão - já não têm serventia nenhuma e nenhuma tiveram afinal senão a de nos fazer viver menos momentos. Se não fosse a tua teimosia em manter o Castelo de pé, eu não teria este momento. Guarda-os bem. Assim vivos vindos à praça. Sinal de que ainda vivo contigo além do sábio registo, ainda sonho com um absurdo momento presente junto a teus dedos ledos.

Dança, barquinho meu!

O meu barco já não dança
Ata-lhe uma corda a florir inteira
Só cabo viril entrançado afiança
Levar ao mar barco ou traineira

Mas meu barco detém as cores
do amor que jaz a seus pés
Carmesim paixão e azul das dores
corta-lhe o perfil de lés a lés

Molha-o uma água fria e diáfana
Tempera-lhe a fronte ao de leve
Solta-se-lhe a corda liana
a lembrar-lhe o amor breve

A terra não é o seu destino
Nem do alto mar conhece ventura
Queda-se certo mas sem desatino
Enquanto o sol lhe sabe a ternura

A corda abre-se num choro salgado
que a areia fina não detém
Sabe-se atada ao seu amado
Por amor dele se faz refém

A coisa nua e crua

Ontem ouvi a voz externa de um escritor, coisa rara. Deixou-nos entrever o segredo da sua produtividade: escreve sentado a uma secretária, de costas para os livros e de frente para uma alva parede nua. Dei-me conta de que a minha pobre e mal decorada casa, tão cheia de falta de coisas, afinal está tão vazia de coisa alguma. As coisas são causa séria de distracções, mas distraidamente apontamos o dedo à inexorável falta de tempo ou àquela outra causa que não coisificando o problema, eufemisticamente, nos justifica - a falta de uma tal de diponibilidade mental. As coisas estão lá todas mas passa o tempo sem que nasça coisa nova. É sempre a mesma coisa. As coisas não se mexem mas mexem connosco, alteram a nossa percepção. Mas um olhar que apenas pousa sobre as coisas, não passa de um olhar perturbado - não vê coisa nenhuma. É que nada se espreme das coisas, as coisas estão dentro de nós. É dentro que escutamos e dentro que ganhamos voz. As coisas, essas, ficam as mesmas. Já agora, o que é uma coisa?