quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Poesia II

Só o que fica é poesia.
Fica o que não pode e o que podia.
Nasce de novo o dia...
Isto sim é poesia.
Na carne esfriam os mais audazes desejos
e fica a palavra que cria a morte
que sobre deste dia
de todos os dias.
Ninguém nasce do Sol
E as asas do homem
o astro queima sem piedade
sem memória da idade
do crepúsculo dos deuses.

Borrão poético II

Sonhar alto é içar velas ao vento. Sonha baixo aquele que joga no amado o sobressalto de viver em mar alto. Sair de um porto seguro sem risco de molhar o pé em água fria não é sonho, é ânsia de quem traz a vida em embarcação ancorada, que não sabe navegar por águas nunca dantes navegadas. Baixinho o medo fala mais alto e o desamor é amor que se fez pequenino. Numa pocinha de água tépida continua-se a jogar os sonhos futuros em barcos imaturos. Anda barquinho aventura-te lá, arrisca a tua estrutura a ver no que isto dá. As minhas mãos dão-te força e a areia molhada que te forma é matéria que não esboroa. Vai sem medo e voga à minha vontade até que ache modo de vagar contigo quando para isso o meu amor tiver idade. Conheço-te os sonhos, as ânsias e os medos. Conheço-me os sonhos, as ânsias e os medos. Amo-te assim num amor pequenino, amo-te baixinho neste meu cantinho. Empurravas tu este barquinho e de medo encalhei e caíste ao charco. Ao mar alto não foste dar não sei porquê tão precoce desamar. Cansados mas em terra firme deixamo-nos ficar. Não é torpe nem vil um amor pequenino.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

David Lynch ou outro consolo

Sou uma triste
Mas tenho os meus consolos
E não invejo o de ninguém.

Se a música não toca dentro de mim
ouço o silêncio
e logo o ouço em David Lynch
Silênciiiiiiiiiiiiiiiiiiiio...
E já não estou tão só assim.

Não há luzes da ribalta
que ponham fim
nisto que se não dentro
anda sempre perto de mim.
E é escuro, pura noite...

A vida não existe
O que são beijos...
Acenos que ninguém vê
numa estação de gasolina
sem carro à vista.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Linguagem superior

Se não podemos pela experiência, curta e tão cheia de aleatório, desenvolver uma linguagem superior, podemos pelo menos formar-nos no Belo, mas essa aprendizagem teria de começar bem antes dos 12 anos. Assim sendo, não há remédio, sistematização alguma, permanente que fosse, no nosso ser adulto, nos "obrigará" à linguagem que apenas pressentimos como uma saudade difusa. Distantes da necessidade primordial do uso dessa linguagem, vivemos de lampejos do Belo, acariciamos secretamente o albatroz que há em nós e olhamos cúmplices para alguns da nossa espécie que se cruzam fugazmente no nosso caminho, sem, porém, podermos estar certos se foi real a nossa conversa secreta, pois esta não parece ter qualquer verosimilhança com o ser que logo de seguida vemos reflectido no espelho.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Amor perdido

Adoro-te assim desta forma triste.
Desejar quem não posso é o meu único crime
Que a beleza não a gasto ao desbarato...
É tarde, foi tarde e será tarde
Até que diga em suspiro, não foi,
E arrefeça o meu amor na sepultura.

Mesquinhez

O mesquinho cose-nos os silêncios indecifráveis no seu ponto miudinho.

Nocturno de Debussy

Que noite medonha a de Debussy! Como noite é o medo que tenho de ti. Casca de noz que o mar agita, cerro os olhos, em vão, aflita. Durmo e a noite em fúria quebra a fina casca do meu ser, e ai que já não há-de ser dia!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A ambivalência

" - Então não acredita no destino? Num poder que reina acima de nós e que tudo orienta para nosso bem? - Não se trata, aqui, das minhas convicções, nem é sítio para eu lhe expor como procuro tornar de algum modo concebíveis coisas que são inompreensíveis para todos nós. A questão está apenas em saber quais são as concepções qu contribuem para o nosso bem. O tecido deste mundo é feito de necessidade e de acaso. A razão humana coloca-se entre ambos e sabe dominá-los: trata o necessário como fundamento da sua existência e é capaz de orientar, conduzir e utilizar o acidental. Só na medida em que ela permanece firme e inabalável é que o homem merece ser chamado um deus da Terra. Ai daquele que se habitua, desde a juventude, a querer encontrar no necessário algo de arbitrário, que gostaria de atribuir ao acidental uma espécie de razão, obedecer à qual seria até uma religião! Significa isso outra coisa que não seja renunciar ao seu próprio entendimento e dar todo o lugar às sua tendências? Imaginamos que somos crentes, porque nos vamos arrastando sem reflectir, nos deixamos determinar por agradáveis acasos e, por fim, damos ao resultado de uma vida assim oscilante o nome de orientação divina. "
Livro I, Cap. XVI in Wilhelm Meisters Lehrjahre, J. W. Goethe
A eterna busca de Goethe, para além das tendências da sua natureza, para além do movimento artístico dominante da sua época, de cariz romântico, é o que mais aprecio neste autor. A constante suspeição é, afinal, parte do método seguido e prescrito pelo nosso amigo Nietzsche, por exemplo. Mergulho mais nas minhas paixões se as submeto à pedra de toque do meu entendimento. Mas como se constitui esse entendimento, nos homens sábios, é o que mais importa compreender e imitar se possível for. É preciso talvez arrancar o homem à sua contingência, perceber em que medida na sua vida se concretiza a ideia matriz, um eterno retorno, parecendo o seu destino obedecer a leis importantes só porque estas se perdem da sua memória. A memória de todos os poetas e pensadores juntos é a nossa chave para soltar as grilhetas da religião e do mito. É trabalho de uma vida, está-se mesmo a ver, como podemos afastar-nos da nossa vida como um pássaro e ainda assim vivê-la com paixão? A espontaneidade da paixão, ironicamente, só é possível através do escrutínio do entendimento, na medida em que estivemos desde sempre mergulhados numa inconsciência colectiva que visa a preservação da vida em sociedade. No século XVIII, Goethe já entendia essa tarefa auto-desconstrutiva e já a levava a cabo através da sua escrita, permanecendo para os vindouros como um escritor ambivalente, um escritor do ambivalente, sem etiqueta fácil.

domingo, 30 de novembro de 2008

Borrão poético

Faz frio e neste frio aqueço-me devagar, sabendo que nenhum corpo pode aquecer com pressa, correndo o risco de se queimar nas orlas e continuar frio e inerte por dentro; tem de aguardar, com vagar, que o estalir crepitante e dissonante dos troncos despidos se funda num som constante. Assim me aqueço em ti, tronco ora disforme, ora massa quente e fulgente que chega até mim num som de gente. A dor apazigua-se e deixa-me quente. Aqueço-me em cada atomozinho da tua escrita e de outras escritas que em lume brando se mesclam com a tua, e se tornam na minha escrita sem assinatura. Assim me encontro, sem necessidade de acelerar este fogo que consome lento e que assim, devagar, eu sustento.

sábado, 29 de novembro de 2008

Chove hoje

Chove a chuva na minha vidraça.
Chove e chove dentro de mim.
Molha-me uma chuva a carcaça,
encharca-me os ossos...
Mas a chuva na minha vidraça desdita:
a que assim fina cai dentro não é chuva sem fim.
Ela, que chove sempre lá fora,
que sempre choveu,
troça desta chuva miúda
que dá cabo de mim.

Devias estar aqui

Os meus dias estão partidos, um a um, pela ausência dos teus lábios. Estarão sempre, tu o repetirás com uma certeza que eu não possuo, mas, também pela ausência dos meus dias nos teus, te negligencio - divide ao menos essa amargura. Eu nem sei com que caso o meu tempo, abandono-me, lá virão dias em que o teu abandono será flagrante mas não por estes dias em que me ausento cumulativamente de mim, adiando promessas ao eu que clama por ti. Tens o dom das surpresas, sinto-me estupida mas deliciosamente menina com as tuas aparições. Esmagada pelas obrigações, sabes bem que te é estendido o crédito das minhas pueris ânsias. Talvez não o saibas mas assim é. Aproveita-o e aproveita-me enquanto o sabor doce cobre a chatice de dias descarnados. Receando que desvaneças, chamo-te frequentemente ao pensamento em situações de lufa-lufa em que imagino como se portaria uma rocha. Aconchego-me, conforto-me nessa rocha imaginária que tu és para mim. Defendo-me dos ventos e do frio que me assola, por vezes bem no centro do palco que piso. Já quando me deito, tenho medo de pensar! Ficas na gaveta das meias e sei que o único sangue quente que tenho é o do meu gato.

O sol mantém-se quente

Saio pela fresta que dá para a minha varanda, na minha cozinha cozem-se castanhas com erva doce. O meu pai vê televisão e os passos da minha mãe estão por todo o lado. Pede-me decisões difíceis para mim, concedo-lhe poderes que ela gere com prazer. O Calvin pede ao meu pai que lhe abra a porta e caga aliviado. Conheço isto desde sempre! Só não havia ainda o Calvin. E tenho medo de perder este mundo com a morte dos mais velhos. Mas apesar desse medo, fecho-me no meu mundo sem lides domésticas. Aguardo a minha vez de cozer castanhas, enquanto isso leio semi horrorizada com a hipótese tola do meu desejo escondido, leio e ouço a Sonâmbula.

Das Lied vom Kindsein

Como se ouve um poema? O som é tudo, a cadência, o tom, a harmonia... as palavras interessam pouco, como às crianças. Foi assim que me deliciei cedo com as línguas estrangeiras e que sem as entender ainda, tratava de inventar idiomas com as amigas. Quando se ouve um poema na língua materna, também se faz essa regressão mas pode ouvir-se com o espanto com que ouves o alemão? O meu amigo alemão já me prometeu "cantar-me" este poema ao ouvido como se lesse aos seus filhos, eu que em alemão sou ainda mais nova do que os seus rapazes. Fico embevecida com a tua oferta e canto: ", warum bin ich ich, warum nicht du?/warum bin ich hier, warum nicht dort...?" Mas repara que nem todo o poema se assemelha a uma cantilena infantil (que me lembra o terraço em casa da minha "mestra", assim chamada a senhora que nos iniciava na escrita, na leitura e nas contas antes do tempo, no tempo em que não havia tempo..., no tempo em que contar era tão apetecível na folha aos quadrados como a jogar à macaca - lembro-me nitidamente do verde quase alface dos rebordos desse terraço...). Mas, dizia eu, ser que pensa e pondera, que nem todo o poema se apresenta nesse registo de transposição de tempos sem tempo, nesse círculo feliz e luminoso... trechos de dureza, de infeliz resignação ao pensamento formado e reflexivo, de tempos fechados e rectílineos, se interpõem... ainda que quem cante, cante com teimosia que ainda assim é o mundo, como quando eramos crianças. O mundo é o mesmo e nós perdemo-lo ou passamos ao seu lado, afinal à caverna de sombras ANTECEDE o mundo. Queres brincar comigo à rodinha? Anda lá! Temos a tarde inteira, um tempo infinito! Lembras-te? Quando acordavamos e tinhamos a eternidade de UM DIA inteirinho para brincar? Dizia-to eu no outro dia, na cama, que queria tardes inteirinhas para fazer só "uma brincadeira" com a certeza de haver uma eternidade para todas as outras por inventar. Como anulo eu os tempos rectilíneos de permeio é que não sei. Sei muito pouco hoje em dia nos meus dias curtos e inexpressivos de contas forçadas. Adoro-te menino (com ou sem vírgula de permeio).

Poesia

Felizmente bebemos Poesia! Graças à Poética, a palavra adquire o valor de um revelador de almas - falar de poesia poderá ser tão dado a equívocos como quando procuramos retratar qualquer elemento do real. Mas no universo poético, lá imersos, a alma que encontramos é a nossa, é pelo menos a nossa auto-descoberta dessa alma - mesmo que sejamos ignorantes. É uma verdade intuída! Basta a sensibilidade para entrar nesse mundo mágico em que a palavra se torna identidade com direito próprio. A palavra poética é opaca e nessa opacidade escorre a alma, vazia que está a palavra do seu corpo habitual. A palavra despe-se dos seus significados porque não se relaciona directamente com os habituais significantes. Os referenciais directos perdem força - felizmente, e as palavras enchem-se de significados, de possibilidades. No ensaio, no texto analítico, estamos forçosamente presos a referenciais históricos mesmo que sejam os da Poética. Mas a poesia é trabalho de artesãos - cada palavra é burilada mas, necessariamente, não se trata de um esquartejar, como aquele a que um texto filosófico ou analítico se propõe. Em poesia há um mistério revelado, uma realidade auto-criada, nesse processo esvazia-se a palavra do seu uso corrente e esta cria novas formas no universo imagético do sujeito poético - a ambiguidade daí resultante é já leitura racional e externa ao mundo poético. Talvez por isso, tendamos a ler e a seleccionar a poesia de acordo com o nosso estado de alma, quando estamos prenhes de mistério. O poeta é fingidor do que deveras sente. O pensador fingidor do que deveras pensa. Analisar sentimento e pensamento é estar de fora - a unidade, a coerência, são só deste modo possíveis. O homem é uno como todas as coisas mas fragmenta-se na auto-análise. Na poesia o homem reúne-se, reencontra-se mas precisa de suspender o real que lhe transcende, por mais que julgue conhecê-lo. Precisa no sentido em que urge! É uma necessidade intínseca do sujeito poético. Também o leitor só bebe poesia se tiver sede de poesia, se a necessidade de a beber se lhe impõe, contra a sua vontade.
Quanto mais rico é o texto poético, tantas mais chaves encontramos nele - as várias chaves, as várias formas de abrir o texto poético, são testemunho da sua riqueza e da inesgotável matéria prima que é a alma humana. O autor não é muito importante. Muito do que escreve é intuído -o seu texto uma vez escrito deixa de lhe pertencer, constitui um filho com identidade própria. Quantos Poetas têm dificuldade em explorar os seus poemas. O seu universo jorrou com aquelas palavras mas após o nascimento desse mundo, deixa-se de considerar o autor e a referência é o sujeito poético. Fernando Pessoa não é quem escreve, é o autor material apenas - dele nasceram vários sujeitos poéticos! E um sujeito poético, ainda que com biografia (o que para mim constitui uma ironia de Pessoa) não é uma realidade coerente, finita, que devamos, possamos e queiramos ter interesse em conhecer. O que intuimos é o mais importante.

O Mar

Rochas que somos, só o desgaste nos derrubará, seremos desfeitos e ruiremos, não de um trago, não, só às portas da derrocada nos aperceberemos que era esse o nosso destino - passarmos incólumes até ao golpe fatal - mas o tempo mói quem sonha ser tragado - uma eternidade à espera de ser pó. Porque ainda esperamos de pé? Rochas que somos, não conhecemos a plasticidade que nos permita descansar a existência. Não há engano possível, a ampulheta escorre...

Alquimia

Vivo! Viver não é uma opção - impõe-se-me. E como vivo, não me surpreende que sofra. Tudo que de mais encantador possuo sem estar preso a mim, é uma dor, vivo-a tinjo-a de todas as cores que contenho, com a certeza triste e ressabiada de que amanhã restará na minha carne, hoje rosada, um espinho morto, esfarelalado, solvido, olvido do tempo em que vivi. O tempo que me roubavas, as tardes furtadas e as manhãs ausentes, as noites frias e os poentes adiados, vivo-os agora a todos, esquivando-me livre ao tempo em que dividias. Una! Só esta dor de não saber quanta mais sou capaz de conter por te saber homem pequeno, mesquinho, cobarde. Encerro a tua cor com a minha num pote que só assim apertado recebe o que mais importa das nuas vidas do nosso amor - nele escorro, destilo a tua e a minha dor e nelas me comprazo. Fel e mel misturam-se e revolvem-se numa massa que deixará de ter nome e sabor. Até lá, vivo!

À direita de Deus

"Quando Deus fez os homens, o seu objectivo supremo foi a existência específica de almas individuais. E do mesmo modo que dispomos apenas de três fontes para conhecer o Criador (a saber a Bíblia, a filosofia da Idade Média e a tranquilidade da nossa alma), parece-nos que a «verdade» ou os «conteúdos objectivos» nunca despertaram a atenção de Deus. Ele não engendrou «ideias» (embora a coisa não seja inteiramente inconcebível), mas relativismos biológicos tais como Adão ou as flores. A criação de Eva opõe-se de facto - e muito tendenciosamente - à aspiração simétrica do pensamento; a bela não brotou de um acto especial - não, surgiu como uma espécie de post-scriptum a Adão. Agindo deste modo, Deus fez notar que não queria ordem nem cosmos, mas algo diferente - e não necessariamente o «caos» (contrário demasiado cómodo!). Na verdade, Deus é humanista, selvagem e a-teoricamente sedento de homem puro - e por isso mesmo, do indivíduo ou da loucura privada anti-objectiva metida na alma!"

À Margem de Casanova, in O Breviário de Santo Orféu, Miklós Szentkuthy




Apetecia continuar a citar mas tenho horários a respeitar.

Apetece, ainda assim, acrescentar, Deus é do PSD, se não mesmo do PP, quando muito da ala direita do PS. E vejam lá se como »ideia» a minha não prima pela simetria. Cómoda esta ideia, é um facto - com os modernistas, estas coisas deixaram de ser assim tão taxativas e lineares.

Um ranger de dentes

Estive a pensar, com a vaga ideia de que nenhum raciocínio produzirá algum dia uma acção dita heróica. Mas também a comédia não é prevísivel. Veremos. Constataremos a ausência de escolha efectiva e acção pura, já o sabemos. A mulher ideal! O homem ideal! Mais nos vale ser loucos e deixar de ser engenheiros e doutores, antes de nos abandonarmos ao celibato ou ao casamento. Porque tudo nos come desde sempre. Não podemos ser tudo. Eu não escolhi o celibato, fui obrigada à escolha e isso não constitui efectiva escolha. De que nos vale então fazer escolhas? Mas podemos revogá-las. Podemos trocar uma vida pela outra. Mas queremos sofrer a perda do que temos por algo que nunca será inteiramente aquilo para o que a nostalgia da nossa infância aponta - poder ser cowboy num minuto e índio no seguinte? Seremos eternos prisioneiros e as nossas partilhas, mesmo as de alcova, não passarão de um exercício infantil de experimentar a brincadeira que terminou na infância. Als das Kind Kind war... A angústia de nem tudo se poder realizar conduz-nos a caminhos estreitos que nos parecem de sentido único, estimula a indolência, prende-nos a relações vitalícias e mais às suas traições inevitáveis ou a uma secura de princípios de quem só não faz concessões porque não sabe ou não pode. Poderiamos ser livres se fossemos capazes de optar em sofrimento! Mas ainda assim, além de que raramente somos suficientemente loucos para mergulharmos voluntariamente a pele em água a ferver, ainda assim seriamos capazes de metódica e voluntariamente escolher a dor como forma de medir todas as sucessivas escolhas, que só por comodismo e preguiça, não relacionamos com o que já escolhemos? Falta-nos método! E a fé não nos basta, bestas racionais que somos, queremos a fé para nos redimirmos e não para viver sem laços eternos. Aceitamos a morte e logo achamos que podemos aproveitar tudo o que agarramos. Até poderiamos, não fossem as convenções e a sua miríade de sentimentos falsos.
Tenha eu método e ter-te-ei quanto puder e souber! À custa da dor será inevitável. Mas serei eu capaz de uma dor metódica que me dê mais paz, que me impeça de me corcomer na hesitação? Serei eu capaz de crescer docemente à sombra da tua cobardia, esquecendo-a? Que crescimento será o meu se espero que me dês a mão na minha escolha dolorosa ou que sofras comigo? Hesitamos os dois cobardemente! Mas não podemos justificar a cobardia própria com a alheia. Isso não. Façamos escolhas silenciosas e metódicas porque a de um não pertence ao outro, só nele se reflecte.
Vivemos sem método e toda a dor que julgamos ter sentido pode não passar afinal de um ranger de dentes inútil.

Vassouras da Alma

Eles fornecem as vassouras, os aforismos, que teimemos em varrer para debaixo do tapete, não é culpa da vassoura. Mas estou em crer que viver é "Como um caminho no Outono: mal acaba de ser varrido, volta a ficar coberto de folhas." Aforismo de páginas abertas ao acaso, ou talvez não: "Foi-lhes dado a escolher entre serem reis ou mensageiros do rei. Como é típico das crianças, quiseram todos ser mensageiros. Por isso existem tantos mensageiros; percorrem o mundo e, uma vez que não existem reis, gritam uns para os outros as mensagens, que deixaram entretanto de fazer sentido. Gostariam de pôr fim às suas vidas miseráveis, mas não se atrevem por causa do juramento que prestaram." " Há perguntas que não conseguiríamos superar se não estivessemos, por natureza, dispensados delas." " Ele é um cidadão livre e protegido da terra, pois está preso a uma corrente suficientemente longa para lhe permitir aceder a todos os espaços da terra, mas não tão longa que permita que ele seja arrancado para além dos limites da terra. Ao mesmo tempo, é também um cidadão livre e protegido do céu, pois está preso a uma corrente semelhante. Se quer ir para a terra, é estrangulado pela corrente do céu, se quer ir para o céu, pela da terra. No entanto, tem todas as possibilidades e sente-o; recusa-se mesmo a remontar toda esta situação a um erro aquando da primeira vez que foi acorrentado." "Ele corre atrás dos factos como um patinador principiante que, ainda por cima, se exercita num sítio onde isso é proíbido." "Ele sente-se prisioneiro nesta terra, sente-se apertado; declaram-se nele as tristezas, as fraquezas, as doenças, as alucinações dos prisioneiros, nenhum consolo é capaz de o consolar, precisamente porque é apenas consolo, terno consolo que causa dores de cabeça face à rude realidade de estar prisioneiro. Mas se se lhe pergunta o que é que ele quer afinal, não consegue responder, pois não tem qualquer ideia de liberdade - e este é um dos seus argumentos mais fortes."
In Aforismos de Franz Kafka

Tu!

Ninguém te ferirá, esquece isso!
Tu que te mascaras, não vês.
Tu que te moves, não vês.
Tu que habitas um corpo,
tu que o desorbitas,
que sais da sua pele martirizada...
Tu não és!
Há a voz, há o Verbo.
E um invólucro que se cola à garganta.
Há um grito
que contém o mundo.
Um corpo que sofre
todas as dores já sentidas.
Mas o teu grito ninguém ouve,
nem tu que és ninguém.
Gritas sozinho.
Falas a um muro,
trazes o fútil bem articulado.
Vens! Mas já nem muro tens.