sábado, 23 de maio de 2009

Desassossego

"A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa
dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio
marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele
ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O
segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos
homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto
o sol e a noite sobre a vária superfície da terra."

In Livro do Desassossego, Bernardo Soares


Como posso eu não ter usado estas palavras se já atingi o pensamento que encerram? O pensamento seria mesmo este? O pensamento de agora coloca-se além da dúvida simples e categórica para se concentrar no seguinte: qual a amplitude, a profundidade e a frequência de cada pensamento que produzimos? Estou eu fortemente em cada pensamento, ou é todo o pensamento fertilizável em mim? Sem resposta, vim colar as palavras que ameaçavam fugir-me.

domingo, 17 de maio de 2009

Eureka!

Ontem a dor sem nome da minha infância encontrou-me e alguém me emprestou a palavra tristeza quando o choro saiu. Estava orfão o choro e a dor era tão velha e analfabeta que, tal como uma criança que aprende uma nova letra, ontem aprendi a juntar a palavra tristeza à velha dor que sentia. Assim que encontrei a tristeza, deitei fora a dor sem nome e sorri à criança.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Tempo do Lobo

O conforto, tal qual o conhecemos no Ocidente, a vida que conhecemos sem conflitos sociais de maior, um mundo de abundância em que basta premir botões para ter acesso ao que já não dispensamos, tudo isso, pode bem estar com os dias contados. Serão estas previsões apocalípticas? E se, de hoje para amanhã, se vivesse no mais contundente mundo do salve-se-quem-puder, num mundo de verdadeira crise das estruturas de estado e da família? O campo rapidamente desconectado das grandes cidades, ficando os mais incautos por lá perdidos, vendo-se obrigados a racionar energia, bens alimentares e outros. A malha social destroçada, o contrato social desfeito, Como nos aguentariamos? Novas lideranças, novos comércios surgiriam, mas, com que valores, com que auto-regulamentação? Neste discursar livre sobre a temática de um filme, digam-me se será uma analogia forçada que me lembre da auto-regulação dos bancos e das instituições financeiras. Haneke não percorre essas linhas de pensamento, o seu filme desenvolve-se na mais fina e tensa corda do espírito humano. Percamos as ilusões, as nossas estruturas morais são mantidas intactas, contando que o mundo que as permitiu erigir esteja intacto também. Num mundo em que apenas meia dúzia de «loucos» veja o seu dique psíquico rompido e desate a matar, a violar ou que se imole pelo fogo, não estamos ainda no limite do insuportável. Mas imagine-se um romper de diques generalizado, quanto tempo resistiriam os valores humanos na sua fonte, a psique humana? Haneke começa por apresentar-nos esse mundo da loucura tolerável de alguns através de um confronto que parece banal. Uma família que se prepara para instalar-se na sua casa de campo de fim-de-semana e que encontra a o seu espaço ocupado por usurpadores. Os olhos dessa família são os nossos. Podem bem ser os nossos. Começamos por ser meros espectadores, simpáticos até com quem toma de assalto a nossa casa. As nossas reservas de humanismo estão quase intactas, a situação parece contornável. Mas Haneke presenteia-nos com o «absurdo» inesperado. O chefe de família é abatido, a mulher e os seus dois filhos encontram-se agora no limbo de quem tudo perde mas cuja estrutura mental ainda não sofreu o devido ajuste. Pedem guarida, mostrando-se a infeliz mãe ainda cordial com quem a recebe. Mas no tempo do lobo tudo se processa muito rapidamente: a procura de garantir as necessidades básicas gasta todas as reservas mentais daquela mãe num ápice. Agora usa-se tudo como moeda de troca a bem da necessidade de permanecer vivo. A família deixa de funcionar. Mas, quando o novo real é «aceite» pelos elementos desta e de outras famílias, o antigo não passando de uma reminiscência, podemos ser levados a fazer uma certa inversão de pensamento. No limite, no tempo do lobo, do vale-tudo, não será o legado familiar a fortuna de uns e a desgraça de outros? A sanidade mental geral está abalada mas não sobrevivem ainda assim à derrocada os mais aptos, aqueles que transportam dentro de si uma boa herança? No desespero, quem é capaz de manter ou até mesmo de criar novos laços humanos, talvez sobreviva melhor. Esta é a esperança representada pela filha adolescente. Mas até quando poderá esta sobreviver à anarquia que parece iminente? A mãe limita-se a chorar e já não conforta o filho mais novo que se remete ao silêncio, simbolizando este a incomunicabilidade da dor. A criança que se quer imolar pelo fogo é a expressão máxima de desespero de quem ainda não está preparado para abandonar a inocência e precisa de anular a dor. A cena final do filme espicaça-nos: um comboio que passa, talvez a caminho da cidade.Talvez um comboio que tenha parado, talvez mais um que siga viagem sem se condoer de quem está apeado na miséria. Seria aquele o fim de um pesadelo de todos, de alguns ou tão somente do nosso? Estaremos nós mergulhados na indiferença que o terminar do filme tende a restabelecer? Quem quer que siga naquele comboio, para onde se deixa transportar?
Sobre Le Temps du Loup, filme de Michael Haneke