Felizmente bebemos Poesia! Graças à Poética, a palavra adquire o valor de um revelador de almas - falar de poesia poderá ser tão dado a equívocos como quando procuramos retratar qualquer elemento do real. Mas no universo poético, lá imersos, a alma que encontramos é a nossa, é pelo menos a nossa auto-descoberta dessa alma - mesmo que sejamos ignorantes. É uma verdade intuída! Basta a sensibilidade para entrar nesse mundo mágico em que a palavra se torna identidade com direito próprio. A palavra poética é opaca e nessa opacidade escorre a alma, vazia que está a palavra do seu corpo habitual. A palavra despe-se dos seus significados porque não se relaciona directamente com os habituais significantes. Os referenciais directos perdem força - felizmente, e as palavras enchem-se de significados, de possibilidades. No ensaio, no texto analítico, estamos forçosamente presos a referenciais históricos mesmo que sejam os da Poética. Mas a poesia é trabalho de artesãos - cada palavra é burilada mas, necessariamente, não se trata de um esquartejar, como aquele a que um texto filosófico ou analítico se propõe. Em poesia há um mistério revelado, uma realidade auto-criada, nesse processo esvazia-se a palavra do seu uso corrente e esta cria novas formas no universo imagético do sujeito poético - a ambiguidade daí resultante é já leitura racional e externa ao mundo poético. Talvez por isso, tendamos a ler e a seleccionar a poesia de acordo com o nosso estado de alma, quando estamos prenhes de mistério. O poeta é fingidor do que deveras sente. O pensador fingidor do que deveras pensa. Analisar sentimento e pensamento é estar de fora - a unidade, a coerência, são só deste modo possíveis. O homem é uno como todas as coisas mas fragmenta-se na auto-análise. Na poesia o homem reúne-se, reencontra-se mas precisa de suspender o real que lhe transcende, por mais que julgue conhecê-lo. Precisa no sentido em que urge! É uma necessidade intínseca do sujeito poético. Também o leitor só bebe poesia se tiver sede de poesia, se a necessidade de a beber se lhe impõe, contra a sua vontade.
Quanto mais rico é o texto poético, tantas mais chaves encontramos nele - as várias chaves, as várias formas de abrir o texto poético, são testemunho da sua riqueza e da inesgotável matéria prima que é a alma humana. O autor não é muito importante. Muito do que escreve é intuído -o seu texto uma vez escrito deixa de lhe pertencer, constitui um filho com identidade própria. Quantos Poetas têm dificuldade em explorar os seus poemas. O seu universo jorrou com aquelas palavras mas após o nascimento desse mundo, deixa-se de considerar o autor e a referência é o sujeito poético. Fernando Pessoa não é quem escreve, é o autor material apenas - dele nasceram vários sujeitos poéticos! E um sujeito poético, ainda que com biografia (o que para mim constitui uma ironia de Pessoa) não é uma realidade coerente, finita, que devamos, possamos e queiramos ter interesse em conhecer. O que intuimos é o mais importante.
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